Quando andamos pelo Brasil, percebemos que ele é formado geograficamente, em sua maioria, por morros. Difícil é dizer em qual cidade não existe um morro e em que morro não rola droga. Vizinho a minha casa mesmo, existe um morro, mas, todos passam por ele, constroem em volta dele e ninguém, nem a polícia propõe-se subir nele durante a noite. O engraçado é que tem leis próprias, com comando e poder para decidir quem vive ou quem morre. Juro que isso me deixa estarrecida, indignada com o Estado e comigo, também. Estou me munindo de indignação para não sentir tanta culpa por um dia ter votado errado, por um dia não ter cobrado desses homens vestidos de paletó o compromisso de cuidar do povo que paga para mantê-los lá, sustentando seus caprichos e o dos seus familiares e, quando é chamada a responsabilidade, mostram-se indignados com a falta de respeito do povo que nos leva a acreditar estarmos diante de pessoas ilibadas e incontestáveis. Todos estão nesse mundo para serem contestados e assim tornarem-se pessoas melhores para a humanidade.
Mais um dia e outro terror do tráfico povoa nosso imaginário. Na tentativa de procurar culpados, ou melhor, bandidos para serem exterminados esquecemos que tudo pertence a um enorme conjunto de ações que convergem para a deflagração dessa guerra sem nomes e sem autores, tudo vira estatística.
Eu fico me perguntando onde vai parar essa guerra velada e disfarçada de ação policial que faz parte do cotidiano dessa gente que vive no morro e morre por esquecimento? Lendo Gaston Bachelard, na sua Poética do Devaneio, há uma passagem em que ele fala sobre o devaneio na infância, não discorre sobre infância, e diz o seguinte: “...a memória sonha, o devaneio lembra...}. Quando o devaneio trabalha sobre a nossa história, a infância que vive em nós traz o seu benefício. É preciso viver, por vezes é muito bom viver com a criança que fomos. Isso nos dá uma consciência de raiz.” Citei esse trecho para reportar-me a ação dos traficantes no morro, a ação da polícia no morro; a ação do Estado no morro. Separei polícia de Estado porque a impressão que nos dá é a de que há mundos paralelos nessa guerra, no sentido de que há uma ação da polícia questionada pelas suas estratégias e, dentro dessa mesma polícia há infiltrações do comando do tráfico no papel de policiais corruptos, como já vimos noticiados em todas as televisões, tornando a “guerra” desigual e, ao mesmo tempo, existe um cansaço do tipo nada vai mudar vamos só cumprir as horas de trabalho e o resto é o resto. O resto de quem ou de que? Serão os moradores do morro os restos das ações que não prezam por suas vidas, por sua dignidade, por seu direito à vida.
Como essa situação chegou a esse ponto? É um empurra-empurra das autoridades, da gente esquecida do morro que vive numa corda bamba, rezando para o tráfico e para a polícia na intenção de manterem-se vivos. Como acabar com traficantes se no morro eles formaram várias gerações e, o Estado sempre se omitiu dessa culpa grave por preguiça de subir o morro, por muitas vezes aliar-se a esses indivíduos para manter uma suposta paz, uma falsa democracia, um falso país sem preconceitos, onde todos são iguais, mas, tem direitos desiguais.
Voltando a Bachelard, que lembranças essas crianças do morro terão quando adultos, se chegarem à idade adulta? Eles ao menos terão tempo para o devaneio na tentativa de apagar a memória que não se permite sonhar por achar-se impuro e sem direito nenhum? Imagino que muitos tentam apagar as lembranças com a intenção de purificar suas almas, mas, e as marcas que ficam onde as esconder se todos os dias o sujeito vê seu espaço cercado por mutilações de infâncias abortadas. Se o morro é um gueto gigante, quantos guetos mais existem dentro dele camuflando e escamoteando ações veladas e intimidadoras? Afinal, quem é o Coronel que manda nesse imenso curral? As crianças desse morro a última coisa que querem lembrar são as raízes pelas quais sustentam suas vidas nesse mundo marginal, que vive a margem da realidade aqui debaixo, onde cada um pode ir e vir, até ir ao morro comprar droga, mas tem sua ação legalizada pela estirpe social da qual faz parte, diferente do morro que de social só houve falar de ações das ONGS e de poucos moradores que resolvem enfrentar um novo gueto que possa ser freqüentado por crianças e adolescentes que conseguem escapar ao pente fino do tráfico e as balas perdidas da polícia que trafega por lá.
Elvia Pereira
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