Fonte: Carpintaria das Coisas/PosHumano (*)
“Copy from one, it’s plagiarism; copy from two, it’s research” (Wilson Mizner)
Aqui na Alemanha não se fala em outra coisa senão no plágio perpetrado pelo Ministro de Defesa Karl-Theodor zu Guttenberg (ah, a ironia de um plagiador chamado “Guttenberg”…) em sua tese de doutorado. Enquanto isso, no Brasil se denunciam novos casos de plágio nas universidades a quase cada semana. Isso coloca em discussão – e confunde – pelo menos três temas importantíssimos, com os quais tenho me debatido continuamente nos últimos dias: cópia, honestidade intelectual e originalidade. Algumas pessoas chegaram a me alfinetar por minha “defesa” do plágio no domínio das artes, como se o escândalo do plágio na academia invalidasse todos os incontoráveis fatos históricos levando à conclusão de que não existe criação sem cópia. Importa, portanto, colocar as coisas em sua devida proporção. Todos nós sabemos que o conceito de “originalidade” tem data de nascimento, e está intimamente ligado aos discursos sobre a figura do artista como “gênio” singular – uma invenção tipicamente moderna. Todos deveríamos saber que não existe arte sem citação, dialogismo intertextual e cópia, assim como em qualquer domínio da atividade humana se opera com base no que nossos antecessores realizaram. Não se faz arte, ciência ou política a partir do zero. No âmbito humano, não existe creatio ex-nihilo, como bem demonstra a literatura bíblica em sua distinção das palavras “bará” (criação a partir do nada, termo reservado exclusivamente à obra divina) e “assá”, o fazer do homem. Imaginemos a cultura como uma interminável conversação (não lembro agora de onde vem essa metáfoa, possivelmente de Kenneth Burke). Trata-se de uma conversa que começou já há centenas ou milhares de anos e continua se processando indefiinidamente. Subitamente, alguém entra na sala e passa a escutar as discussões nas quais os debatedores estão envolvidos. Após algum tempo, esse intruso irá querer particpiar do diálogo, e naturalmente usará em seu discurso argumentos e termos daquilo que escutou anteriormente. Isso não significa que ele não possa trazer nada de “novo” à conversação (reparem que uso o termo entre aspas), porém, certamente não irá partir do zero, refazendo toda a cultura a partir de suas bases. Ora, o mito do criador “genial” está carregado de inflexões religiosas. Alguém já se perguntou por que razão a mais célebre fotografia de Einstein é aquela onde ele aparece com a língua de fora com seu look tipicamente descabelado? O mito implica a idéia de que a fronteira entre loucura e genialidade são muito tênues. Isso porque, paradoxalmente, o criador é tomado de um “entusiasmo” (palavra que etimologicamente significa “estar tomado pelos deuses”) inexplicável em termos humanos. A única origem possível do gênio se encontraria na esfera da transcendência – e daí as raizes profundamente religiosas dessa noção. Não é casual, também, que a palavra “inspiração” remeta ao “sopro dos deuses”. Eu diria que dessa estrutura mítica surge uma fascinante contradição (condição típica de todo mito): quando estou “inspirado” é quando sou menos “original”, já que são os deuses que falam em mim e não minha suposta subjetividade! Nesse sentido, a figura do autor cumpre um papel jurídico, de regulação social e mesmo de ordem religiosa na cultura ocidental. Como dizia Guimarães Rosa, o trabalho de Deus foi criar o mundo, e o do escritor é complementar sua obra. Imaginamos o ato criativo como uma cópia menor do gesto arqutípico de Deus com seu fiat lux. Todavia, podemos dizer que, à frente de seu tempo (mas afinal, Ele existe fora do tempo), Deus já fazia uso dos modos de criação colaborativos, pois foi ao homem que atribuiu a função de nomear todos os seres do Paraíso. E, bem pouco “criativo” em sua atividade, o homem nomeia com base na essência já dada no ser do animal. O cachorro se chamará “kelev”, pois seu maior atributo é a fidelidade (ele é “segundo o coração”, “lev”). Então tudo isso significa que o plágio, pura e simplesmente, pode ser justificado como prática acadêmica? Claro que não, mas vamos por partes. Em primeiro lugar, nem sempre é fácil identificar a fronteira precisa entre o plágio, no pior sentido do termo, e aquilo que faz parte tradicionalmente da estrutura do discurso acadêmico. Ora, um dos pilares do discurso acadêmico é a referência autoral, a busca de apoio a idéias e proposições em trabalhos sancionados pela academia. Quando essa prática descamba para o extremo, ela se converte num “magister dixit” – ou seja, na simples comprovação de uma tese porque um autor consagrado assim o afirmou. Aliás, nada é mais comum na academia que trabalhos nos quais a figura do “autor” do texto se dilui completamente face ao oceano de pensadores e obras citados. Mas entre citações e paráfrases, existem momentos em que a linha divisória entre referência e plágio se esfumaçam. O instrumento que nos serve de guia aqui é a menção explícita da fonte, a atribuição devida ao autor, a chamada “honestidade intelectual”. Quando, porém, encontramos um trabalho onde o autor copia parágrafos inteiros de um texto e em nenhum momento menciona sua fonte, sabemos que se trata de uma “distração” imperdoável ou de plágio descarado. Ora, na cultura contemporânea do mashup, o que encontramos são “plágios explícitos”. Ninguém tem dificuldade em identificar as “fontes” de um criador como Girl Talk, por exemplo. Seu gesto de cópia é honesto e transparente, sem buscar ocultar os diversos pedaços de obras com os quais ele elabora seus “remixes”. Em um de seus ensaios mais interessantes (“A Inovação no Seriado”), Umberto Eco demonstra que toda arte, desde seus primórdios, sempre lançou mão da cópia e da imitação. Aliás, artes seriais, como a gravura estão aí para demonstrar que a serialidade não é um traço exclusivo da chamada cultura “massiva”. De fato, a principal crítica que se poderia fazer à televisão, por exemplo, não é que seja imitadora, repetidora ou serial, mas sim que busca esconder suas estruturas repetitivas sob uma máscara de novidade. Seu maior problema é sua falta de “honestidade intelectual”. Eco faz inclusive uma defesa da cultura midiática contemporânea, afirmando que, diferentemente de nossos antepassados, nosso prazer estético se concentra em desfrutar as mínimas variações de um mesmo tema exaustivamente retomado. Na academia, a nova cultura de plágio que tem se estabelecido nos últimos anos nada tem de interessante. Não se trata de reelaborar criativamente materiais do passado, como fazem hoje cineastas, músicos e escritores. Borges foi, possivelmente, o maior mestre do plágio e da mentira na história da literatura no Ocidente (ao mesmo tempo, que título de livro poderia ser mais honesto que o de sua obra magna “Ficções”? ). Ele continuamente propunha ao leitor um divertido jogo intelectual, consistindo no desafio de identificar, na sua cornucópia de referências, os limites entre o factual e o ficcional. O que temos encontrado na academia são autores medíocres, que escondem sua mediocridade por meio de um gesto nitidamente desonesto. Sim, desonestidade. Não me agrada usar a palavra “roubo”, porque não consigo acreditar que a cultura tenha um “dono”. Na Alemanha, ninguém entende porque Guttenberg ainda não renunciou, dada a gravidade de suas ações para o espírito alemão. Aliás, é interessante lembrar que nenhum povo colaborou tanto para o mito do criador genial quanto os alemães. Foram os românticos, como Novalis, Schlegel e Kleist, possivelmente os maiores responsáveis por essa invenção. E não terá sido Nietzsche, com suas especulações sobre o artista como Übermensch, ser privilegiado capaz de “transvalorar todos os valores”, um continuador dessa mitologia em alguma medida? Mas os românticos foram mestres do palimpsesto, supremos “releitores” de textos (como, por exemplo, a filosofia e a cultura da Índia), grandes “plagiadores”, no melhor sentido da palavra. O problema do plágio de Guttenberg e daqueles que temos testemunhado no cenário brasileiro é que servem unicamente para preservar o status quo. Plagia-se, desonestamente, para se adquirir ou preservar um título. Plagia-se para criar uma falsa aura de superioridade intelectual que, no fundo, nada tem a ver com as reais paixões do intelecto. A verdadeira paixão intelectual (termo que empresto – ou “plagio”? – de Octavio Paz) é ativa, não reativa; é perturbadora e não mantenedora do status quo. A espécie de plágio cometida por Guttenberg não serve para colocar em cheque a noção de autor. Pelo contrário, reforça-a como fonte suprema de autoridade e posse de conhecimento. Em um de seus textos, Borges propõe abandonar a tarefa exaustiva de fazer história literária com base na enumeração de autores e suas trajetórias de vida. Em lugar disso, sugere fazer a história da literatura tomando-a como a vasta obra de um único e impessoal autor (a própria “literatura”). No dia em a cultura não tiver donos, o plágio desonesto não terá mais razões de existir. Pois não haverá mais nada para ser roubado e nenhum lugar onde a mediocridade possa se ocultar…Erick Felinto é Professor of Media Studies and Cyberculture Researcher at the State University of Rio de Janeiro (UERJ)