Auctoritas Versus Democracia Universitária

Posted by Maria das Graças Pinto Coelho 26 de jun. de 2009

A propósito da crise que assola a USP - a mais importante universidade brasileira -
o pesquisador Renato Janine escreveu esse artigo que merece a atenção de todos
os acadêmicos que compartilham nosso blog, já que se encaixa bem à nossa realidade institucional.
Ele defende o princípio da qualidade e da "auctoritas" - autoridade - na
academia, que é conquistada na criação e no fazer acadêmico - produção
intelectual - e não na democracia participativa.
Uma boa reflexão!!!


Que universidade é essa?


Distinção entre poder e autoridade é crucial para entender a crise por que
passa a USP

RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA - 21/06/09

A USP é a melhor universidade da América do Sul. E é a única universidade
pública brasileira que não tem eleições diretas para reitor. Esses dois
traços estão ligados ou não? Parte da comunidade acredita que ela é a melhor porque
não cai na demagogia. Outra parte acha que não ter eleições diretas é sério
déficit democrático.
Muito da discussão se deve a uma confusão entre poder e autoridade. Na
academia, o que conta é autoridade. Ter autoridade não é mandar. "Auctoritas" é algo
difuso. Vem do latim "augere" -crescer, desenvolver, animar, embelezar-, que,
por sinal, também dá "augusto". Expressa um sentido moral, um respeito à
qualidade. Passa pelo reconhecimento do mérito no pensar, no criar. Na
democracia, o poder vem da eleição. Mas nem voto nem nomeação dão autoridade.
Dentro da academia, um poder sem autoridade é vazio. Uma universidade ou um
departamento chefiados por quem não tem autoridade acadêmica perde em
respeito.

Povo USP
Assim, primeiro ponto: uma universidade deve ter qualidade. Esse é o seu
diferencial específico. Deve formar bons alunos, mas, se tiver ambição de
liderança, deve formar doutores muito bons e fazer pesquisa entre boa e
ótima.
Isso a USP faz. Segundo: "democracia", o poder do povo, exige uma pergunta. O
que é o povo? Há um "povo USP", composto de seus docentes, funcionários e
alunos, que teria o direito ético de eleger a direção da universidade? Não. O
povo que existe é o paulista, que sustenta a USP. Os servidores, docentes ou
não, que ele paga, e os alunos, que recebem de graça um ensino muito bom, não
são um povo.
Ninguém de nós cogitaria que a direção das secretarias de Estado fosse eleita
por seus funcionários, ou a dos hospitais pelos seus servidores. Mas, se o
reitor da USP fosse nomeado (e demitido) pelo governador como um
secretário de Estado, seria um desastre.
A autonomia é necessária -justamente, porque a universidade se distingue
por sua qualidade. Sou contra a "meritocracia". Numa democracia, o poder
("kratos") é do povo. Ter poder implica definir metas para o governo. A universidade é um meio excelente para certos fins que nossa sociedade consensuou democraticamente:
formação de profissionais (na graduação) e, nas melhores instituições,
formação de pesquisadores e avanço na pesquisa.
Sendo um meio, a universidade tem de ser muito boa. Daí que nela deva
contar não o poder, mas a autoridade. O governador recebe poder do povo. Já a
autonomia da universidade decorre de sua autoridade. Isso a deve afastar dos confrontos partidários -cujo lugar correto está na disputa pelo poder político. A
pesquisa pós-graduada constitui o segredo interno da boa universidade. Ninguém sabe
disso fora dela. Quando a imprensa ou os políticos se debruçam sobre as
universidades, quando discutem vestibular ou cotas, pensam na graduação.
Mas o que distingue uma universidade em segundo grau -isto é, aquela que
forma quadros para serem criadas e desenvolvidas outras instituições de ensino
superior, fazendo o que chamamos de "nucleação" (isto é, formar núcleos de
bons docentes)- é sua pujança na pós-graduação. E isso porque, no Brasil, à
diferença dos EUA, quase toda a pesquisa, inclusive parte da tecnológica, se faz nas
universidades. Mas quem é o sujeito da autonomia, quem -dentro da
universidade- detém legitimidade para, em nome dela ("autos"), dar-lhe suas regras, suas leis (o "nomos")? Aqui está o problema.
Neste ano, teremos a sexta eleição para reitor por regras que fazem com que,
depois de um primeiro turno em que votam mais de 1.200 membros das
congregações e conselhos, o nome se defina num segundo turno restrito aos 256 membros dos conselhos centrais. Das cinco eleições realizadas desde 1989, só numa
venceu um candidato de oposição ao reitor. Milhares de docentes doutores nem sequer
votam no primeiro turno, e o segundo turno é próximo demais do poder. Isso não é
bom. Afasta o reitor da comunidade.
Tal situação favorece a greve de (quase) todo outono e a reivindicação,
que não tem apoio da maioria acadêmica, por eleições diretas. Por que digo que não
tem apoio? Porque em nenhuma escolha depois de 1985 houve um candidato sequer que
fosse à consulta direta. Todos aceitaram as regras do jogo. Mas ficou uma
distância entre o reitor e sua comunidade, que o enfraquece.

Outro sistema
Na comunidade acadêmica, muitos não aceitam eleições diretas. Vários bons
pesquisadores prefeririam um sistema que funciona bem, fora da América
Latina: o do comitê de busca que entrevista os selecionados e, em razão de seu
currículo e de seus projetos, escolhe o reitor. Mas não creio que esse
sistema funcione aqui, porque contraria as tradições construídas nas últimas
décadas e que tendem à eleição. Nosso sistema foi testado, está superado e defendo sua mudança para o futuro. Mudá-lo a quatro meses das eleições seria
ilegítimo. Mas ele precisa ser ampliado.
Concluindo: primeiro, toda e qualquer mudança na direção da universidade
só terá valor se aumentar, e não diminuir, a qualidade da pesquisa científica que
fazemos. É por isso que muitos se opõem à eleição direta, na qual veem a
subordinação da qualidade a questões políticas, a redução da autoridade ao
poder. Segundo, precisa aumentar sensivelmente o colégio que escolhe o
reitor.
Pessoalmente, defendo que um colégio mais amplo -que inclua os membros dos
conselhos departamentais e das comissões estatutárias nas faculdades- vote no
primeiro turno; que o segundo turno também se amplie, talvez com o mesmo
colégio; e que se negocie com o governador a substituição da lista
tríplice por uma representação da sociedade no colégio eleitoral, de modo que a eleição do reitor se complete pelo voto.
Há, sem dúvida, outras propostas de ampliação. Mas qualquer mudança na
eleição só tem sentido se for para aumentar a legitimidade do reitor -fazê-lo mais
representativo, sim, mas lhe dar maior "auctoritas". Na USP, a autoridade foi
para os líderes de bons grupos de pesquisa. A reitoria precisa recuperar a
liderança, mas esta não é questão de poder, e, sim, de qualidade.

RENATO JANINE RIBEIRO é professor titular de ética e filosofia política na
USP e foi diretor de avaliação da Capes entre 2004 e 2008. É autor de "O Afeto
Autoritário" (ed. Ateliê).

1 Responses to Auctoritas Versus Democracia Universitária

  1. Adorei! Mas tirem as fotos em que eu estou comendo, please!
    Graça

     

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