A ética esquecida

Posted by admin 27 de fev. de 2010

Fonte: FNDC
Pergunta-se sobre o futuro dos jornalistas. Eles estão em vias de extinção. O sistema não quer mais saber deles. Poderia funcionar sem eles, ou digamos que ele consente em trabalhar com eles, confiando-lhes, porém, um papel secundário: o de funcionários na rede, como Charlot em Les temps moderns. Em outras palavras, rebaixando-os ao nível de retocadores de transmissões de agências. (ROMANET, 1999, p.45).
*Luciene Tófoli é mestre em Letras e em Psicanálise,  pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora. Formada em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Professora substituta da Faculdade de Comunicação da UFJF. Autora do livro Ética no Jornalismo, da Ed.Vozes, em 2008.
Você  já leu os jornais? Assistiu às notícias da TV? Ouviu as últimas na rádio? Surfou pela internet? Se já cumpriu esse ritual, talvez esteja sabendo tudo. Tudo do mesmo. Esse é um dos novos hits da modernidade: o mimetismo midiático. O final do século XX trouxe mudanças profundas e impactantes para o jornalismo e para o modo de fazer jornalístico. Submetido a uma lógica que resulta da sobreposição de constrangimentos técnicos, econômicos e sociais, o profissional está obrigado a produzir em larga escala, com custos menores e no mais curto espaço de tempo. Um dos resultados de toda essa conjunção é o que jornalista espanhol Ignacio Ramonet chama de mimetismo midiático. 

O mimetismo é aquela febre que se apodera repentinamente da mídia (confundindo todos os suportes), impelindo-a na mais absoluta urgência, a precipitar-se para cobrir um acontecimento (seja qual for) sob pretexto de que os outros meios de comunicação – e principalmente a mídia de referencia – lhe atribuam uma grande importância. Essa imitação delirante, levada ao extremo, provoca um efeito bola-de-neve e funciona como uma espécie de auto-intoxicação: quanto mais os meios de comunicação falam de um assunto, mais se persuadem, coletivamente, de que este assunto é indispensável, central, capital, e que é preciso dar-lhe ainda mais cobertura, consagrando-lhe mais tempo, mais recursos, mais jornalistas. Assim os diferentes meios de comunicação se auto-estimulam, superexcitam uns aos outros, multiplicam cada vez mais as ofertas e se deixam arrastar para a superinformação numa espécie de espiral vertiginosa, inebriante, até a náusea (RAMONET, 2001, p.20-21).

Derivado do grego, mimese quer dizer imitação. Mas a prática, comum no século XXI, entre profissionais e mídias, já fora apontada por outros estudiosos da comunicação. Pierre Bourdieu (1997, p.33) fala em “circulação circular” da informação: “[...] para fazer o programa do jornal televisivo do meio-dia é preciso ter visto as manchetes do 20 horas da véspera e os jornais da manhã e para fazer minhas manchetes do jornal da noite é preciso que tenha lido os jornais da manhã”.

Esse jogo de espelhos, consistentemente institucionalizado pelo modo industrial de se fazer jornalismo, vai redundar em sérias consequências. Sem entrar no mérito, uma vez que as mesmas ainda não foram suficientemente debatidas, não se pode negar um debate ético sobre vários aspectos.
Até  que ponto esse tipo de retroalimentação e reutilização do material do concorrente é lícita e contribui para a informação da sociedade?

Numa pesquisa sobre a produção de notícias para a internet, o professor Fábio Henrique Pereira, da Universidade de Brasília, flagra um novo perfil do profissional da notícia no século XXI: o “jornalista sentado”. Num estudo de campo sobre o assunto, revela:

Esse sistema de retroalimentação fica latente já na primeira visita à redação do CorreioWeb: TV sempre ligada em algum tipo de programação jornalística, rádio sintonizado na CBN local, consulta ao sites da Globo, do Estado de São Paulo, da BBC Brasil, etc. [...] à medida que a prática de copiar e reutilizar o material do concorrente torna-se usual, os jornalistas vão se importando menos com isso. Para a empresa, a pirataria significa dividir a audiência do site com veículos que não pagaram pela cobertura de determinado evento, seja pela compra de informações, seja pela contratação de jornalistas. Isso afeta os lucros e inviabiliza a publicação de informações exclusivas pelo site. Mas para os jornalistas isso não faz tanta diferença. Responsável pela publicação de várias notas por dia, quase nunca assinadas, o jornalista não se identifica com o produto. Não há nenhum sentimento de posse pela matéria. Para ele, ser pirateado é uma prática lícita, desde que ele possa fazer o mesmo (PEREIRA, 2003).

Esse tipo de procedimento vai resultar, na melhor das hipóteses, em desinformação. Na mesma pesquisa, Pereira chama a atenção para o seguinte fato:
 
No dia 13 de maio de 2003, uma fábrica de ‘merla’ (tipo de droga produzida com os restos do material utilizado para refinar cocaína) havia sido invadida pela polícia em um endereço denominado “QNP”. Logo, Fernando Carneiro e Giulliano Fernandes, seu coordenador, iniciaram um discussão para saber o local exato da quadra, se na cidade-satélite de Taguatinga ou na Ceilândia. Ao final da discussão, os dois jornalistas chegaram à conclusão de que a QNP localizava-se em Taguatinga. Não foi feito nenhum tipo de procedimento de checagem da informação, que foi ao ar logo em seguida. Minutos depois, Fernando recebeu um telefonema e um e-mail, ambos alertando o estagiário do erro e de que o endereço publicado ficava, na verdade, na Ceilândia. Nos casos em que o CorreioWeb comete algum tipo de erro, o procedimento padrão é colocar uma segunda nota no ar com o título de ‘Erramos”, remetendo o leitor para a informação incorreta publicada anteriormente. Mas nem sempre um erro pode ser retratado de forma eficiente. No exemplo anterior, da nota sobre a invasão de uma fábrica de merla, a matéria incorreta já havia sido lida, minutos mais tarde, pela rádio CBN. (PEREIRA, 2003).

Outro exemplo flagrante aconteceu no dia 20 de maio de 2008.  Por volta das cinco da tarde, a GloboNews interrompeu sua programação para um plantão sobre um acidente aéreo: “interrompemos a transmissão da CPI dos Cartões Corporativos para mostrarmos imagens ao vivo de São Paulo. Acaba de chegar a informação de que um avião da empresa aérea Pantanal caiu em cima de um prédio comercial na Zona Sul de São Paulo”(CARONI, 2008).

O acidente era, na verdade, um incêndio em uma fábrica de colchões. Entretanto, bastaram cinco minutos de transmissão equivocada para que a falsa notícia fosse retransmitida por várias emissoras de rádio e alguns portais, entre eles o IG e o Terra.

A justificativa da Central Globo de Comunicação para a “barriga” foi a seguinte:
“A respeito do incêndio ocorrido hoje à tarde em São Paulo, a GloboNews, como um canal de noticias 24 horas, pôs no ar imagens do fogo assim que as captou. Como é normal em canais de notícias, apurou as informações simultaneamente à transmissão das imagens. A primeira informação sobre a causa do incêndio recebida pela GloboNews foi a de que um avião teria se chocado com um prédio na região do Campo Belo, Zona Sul de São Paulo. Naquele momento bombeiros e Infraero ainda não tinham informação sobre o ocorrido. As equipes da própria GloboNews constataram que não havia ocorrido queda de avião e desde então esclareceu que se tratava de um incêndio em um prédio comercial. Poucos minutos depois o Corpo de Bombeiros confirmou tratar-se de um incêndio em uma loja de colchões”. 

Ao que tudo indica, a falsa informação foi repassada à emissora por um morador da região, já traumatizado com outros acidentes. Entretanto, os produtores sequer apuraram a matéria antes que colocá-la no ar.
Se um profissional é obrigado a produzir mais num espaço de tempo menor para obedecer à lógica comercial das empresas; se lança mão desse mimetismo como forma de cumprir o que estabelece sua linha de produção, como um simples operário de um sistema de produção taylorizado (o que se acentuou, principalmente, depois da internet e dos grandes conglomerados de mídia); se publica notícias sem a devida apuração ou checagem, legitimando matérias incorretas ou até mesmo falsas; se se coloca como instrumento para o agendamento dos meios por produtores de notícia, está indo de encontro a pelo menos cinco pontos estabelecidos pelo Código de Ética:

Art. 2° -
[...] I- a divulgação da informação precisa e correta é dever dos meios de comunicação e deve ser cumprida independentemente de sua natureza jurídica - se pública, estatal ou privada - e da linha política de seus proprietários e/ou diretores.
II - a produção e a divulgação da informação devem se pautar pela veracidade dos fatos e ter por finalidade o interesse público;
Art. 4º O compromisso fundamental do jornalista é com a verdade no relato dos fatos, razão pela qual ele deve pautar seu trabalho pela precisa apuração e pela sua correta divulgação.
Art. 6º É dever do jornalista:
[...] V- valorizar, honrar e dignificar a profissão;
[...] IX- respeitar o direito autoral e intelectual do jornalista em todas as suas formas. [continua]

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